segunda-feira, 2 de março de 2009

sábado, 28 de fevereiro de 2009

...a cidade e o saber...

Caminhando mais de trinta alvoradas na direção norte destas nossas terras, chega-se a Hum, cidade antiga e ricamente arborizada, onde se fez uma das mais bela cidade dos encontros. A cidade do saber surge inesperadamente, sem nenhuma pretensão ou vontade além daquela simplesmente de existir. Mas, mal sabe ela, que como as demais cidades dos encontros, faz muito mais do que seu próprio existir: ela deixa marcas nos seus habitantes.
Quem por ela passa, quem dela respira, quem nela se alimenta vive uma experiência nova a cada instante. A experiência do saber e o estímulo da novidade. Pelas ruas de Hum, apesar da poeira, areia e calangos, cruzam pessoas que a todo momento estão fazendo algo. Seus habitantes nunca param. Para eles até o descanso é um ato de produção e aprendizagem. Nunca dormem. Comem conversas, bebem novidades e irradiam uns sobre outros.
Uma pessoa aparenta ser totalmente diferente de outra, entretanto todas são iguais. Cada um tem algo para ensinar na proporção exata do que tem para aprender. Na medida que aprende algo, tem automaticamente o que ensinar. Mesmo sendo pessoas diferentes, desde jovens recém ingressos neste mundo até grandes mestres dos saberes, todos aprendem e ensinam simultaneamente, sem diferenças nem hierarquias.
O tempo todo é repleto de atividades, cada intervalo, desde o raiar de um dia até os primeiros raios do próximo dia. Em formatos de oficina, palestras ou conversas tudo acontece, tudo se move e as coisas criam forma. Em uma oficina de mosaico alguém ensina, ao passo que em outra de pintura em vidro esta mesma pessoa aprende.
Surpreende esta ingênua relação, uma troca onde um depende do outro de tal maneira que a cidade não poderia existir de outra forma. E da mesma maneira que ela se faz, ela se desfaz! Deixando cada um que por ela passou um pouco mais saciado em suas lacunas do saber.
Mas não importa o quanto essa cidade se assemelha a outras, tampouco como ela se extingue, pois carrega sua importância no aprendizado: o pão, o leite e o calçado dos seus habitantes.







MAPA DO SABER





DILEMA



Recém-chegado,
Ele vê que tem muitas coisas
Que pode fazer
Pensa um pouco
E vê que as possibilidades
Se abrem ao infinito
“Meu Deus!
O que vou fazer?”






ENTREVISTA COM RAFAEL PASSOS
[Rafael Passos é arquiteto, formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul]

MEMÓRIAS DE UM ENCONTRO – XXV ENEA – JOÃO PESSOA - 2001

Era mais uma vez julho, mais um semestre do curso se encerrava, e outra vez nos organizávamos para ir a um ENEA, seria meu sexto encontro, e meu terceiro ENEA; e o mais distante, setenta e duas horas de viagem desde a capital mais austral do país até a calorosa e bem arborizada João Pessoa, mesmo assim estávamos levando um ônibus inteiro cheio de estudantes de arquitetura das quatro faculdades de arquitetura que então existiam em Porto Alegre. Havia também uma tensão especial do ponto de vista individual: eu estava sendo indicado à diretoria da Federação Nacional dos Estudantes de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, a FENEA.
Estávamos em meio a grandes organizações em Porto Alegre, o Conselho Livre Metropolitano de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (COLMEA) estava sendo recriado, e preparávamos o 2º Acampamento Intercontinental da Juventude (AIJ), integrando o 2º Fórum Social Mundial (FSM). Porto Alegre fervia ativismo, e nós não podíamos deixar de protagonizar este momento tão importante para a vida política e cultural da cidade.
Com este espírito estávamos embarcando para João Pessoa, com um entusiasmo fantástico e uma organização que há muito tempo não se via, em Porto Alegre, ou no restante do país.
Na chegada a João Pessoa, bastante cansado da longa viagem, lembro de desembarcar no campus da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e sentar-me ao pé de uma das diversas acácias que arborizavam o estacionamento, lembrando a música de Zé Ramalho “O Jardim das Acácias”, em homenagem àquela que é uma das capitais mais arborizadas do país.
Enquanto aguardávamos que nosso delegado fosse resolver questões de crachás para que pudéssemos entrar na “cidade ENEA”, como gostávamos de chamar o local do encontro, avistávamos os tapumes que a guardavam, tais quais os muros das cidades medievais; preservando a integridade e intimidade daquele ambiente efêmero, criado para abrigar uma cidade itinerante que se materializa uma semana a cada ano, e pelos outros trezentos e quarenta e tantos dias existia somente no imaginário daqueles que sonham vivê-la de novo.
Naquela cidade podíamos viver uma utopia social, política e cultural, lá a pureza nunca seria vista como ingenuidade, o companheirismo era natural e espontâneo, uma vez que estávamos entre os nossos: estudantes de arquitetura, iguais, semelhantes de lugares distantes. Diversidade profusa de sotaques, vestimentas, hábitos se encontrando por uma semana, mas atados por uma vida inteira pela paixão pela arquitetura.
O Centro Politécnico, onde aconteceu o encontro, recebeu para aquele encontro pouco menos de 2 mil estudantes. A disposição se dava em uma planta racionalista. Um corredor aberto distribuía os edifícios onde estavam as salas de aula, laboratórios e um auditório. Do outro lado foi colocada uma estrutura tensionada, à guisa de circo, onde aconteceriam as palestras e, naturalmente, as festas. Nas salas de aula seriam os alojamentos, onde cada um colocaria seus colchonetes e dormiriam ali, junto a seus colegas de aula, ou ao lado de colegas de lugares distantes os quais ainda não conheciam ou ansiavam por reencontrar. Naquele encontro ainda era a maioria aquele que queriam viver esta coletividade, esta exposição ao outro, nos encontros vindouros o que se veria seria a dominação das barracas, criando assim um mundo individual, íntimo, dispersando esta idéia da vida coletiva extrema, bastante fugaz, mas necessária, ao ponto de vista deste que escreve, para fazer um contraponto ao individualismo do cotidiano. Na cidade dos encontros se podia inventar um outro cotidiano, utópico, onde todos comiam da mesma comida, dormiam juntos, acordavam juntos e expunham seus segredos do dia-a-dia a pessoas que conheceram ontem. Isto, no mínimo criava uma provocação ao modelo vigente na vida contemporânea.
A rádio-poste, no ar 24 horas por dia, enchia o ar da cidade, anunciando as próximas atividades, como a saída a Tambaba, uma praia de nudismo, ou ao ato público, oficinas, passeios, palestras, ou mesmo algum recado ou simplesmente uma gozação, brincadeira sobre algum nome engraçado de cidade, ou coisa parecida.
Já no primeiro dia nossa delegação montou a barraca da COLMEA, onde colocávamos a disposição o exemplar do jornal recém editado; divulgávamos o AIJ e o FSM aos estudantes de outros lugares do país, que podiam compartilhar de um bom mate, ou de um carreteiro de charque ou até mesmo comer um pinhão, parte da oficina que eu estava oficiando.
Debaixo de um flamboyant montei um fogo de chão, colocando a cozinhar o carreteiro de charque, e debateríamos o lugar das regionalidades na estética e na ética da nova arquitetura, o tema do encontro¹. Logo se juntaram pessoas de diversos sotaques e regiões, e começamos a conversar, “charlar”, e não demorou muito o pinhão e o arroz de carreteiro foram acompanhados por uma “coxa-de-moça” e outros tipos de rapadura e comidas tradicionais de outros lugares, como se fosse algo combinado.
Foi lá pela metade do encontro que algo que eu nunca tinha visto ocorreu: uma manifestação de estudantes da UFPB (em sua maioria militantes de partidos de extrema-esquerda ligados ao DCE), do lado de fora dos muros, indignados por não poderem entrar no encontro, nos acusavam (digo nós como estudantes de arquitetura, todos co-responsáveis por aquele acontecimento) de privatizar um espaço da universidade pública, uma vez que o espaço do encontro era privativo aos estudantes de arquitetura inscritos no encontro. Era claro para nós que ali estava envolvido também um conflito local com o Centro Acadêmico da Arquitetura, que não estava alinhado ao grupo ligado ao DCE.
Aquilo me bateu forte. Quer dizer, o preço por ter aquele ambiente acolhedor, onde facilmente uma pessoa começava a conversar com a outra, numa abertura que o mundo real, de fora daquele mundo, não permite tão facilmente. Devido à violência crescente e ao individualismo reinante. Batia de frente, pois aquela utopia só era possível de uma forma totalmente artificial, comparável aos resorts, condomínios fechados e outras formas contemporâneas de acastelamento.
Mais que isso, bateu forte a todos nós de Porto Alegre envolvidos com a organização do Acampamento Intercontinental da Juventude, que seria realizado em um parque público da cidade, e reuniria mais de 20 mil jovens de todo o mundo e, ao contrário do ENEA, seria completamente aberto à cidade. É claro que a preocupação com segurança seria muito maior, mas este novo modelo somado à manifestação que ocorria ali em João Pessoa nos deixou um tanto perplexos.
Este foi um encontro de muita festa e alegria, mas de poucas atividades arquitetônicas. Não precisava ser assim, no entanto não posso deixar de expor que acredito que o simples fato de colocar dois mil estudantes de arquitetura juntos durante uma semana, nem que seja para beberem muito e rirem juntos, fazia com que a arquitetura surgisse em pequenas conversas entre grupos de estudantes de lugares distintos, miríades de sotaques entoando sua paixão ou repulsa pelos velhos estilos, pelas novas tendências, o caos urbano, o planejamento racional, ou a organicidade espontânea das favelas, enfim. Muitas vezes testemunhei estes atos.
A plenária final foi bastante conturbada, tendo sido esvaziada ao final. Outro fato raro ocorreu naquela plenária, como não havia ocorrido desde sua implantação, naquele ano não foi escolhido um tema para o próximo encontro. Mas havíamos escolhido a cidade do próximo encontro. Do calor nordestino, nos transferiríamos ao frio do sul: Curitiba seria a sede do próximo encontro. E quanto a mim, bom, aceitei o encargo de assumir a Diretoria de Relações Externas da FENEA por um ano, atividade que realizei com imensa dedicação e carinho por aquela entidade a qual devo muito. À FENEA devo o fato de hoje ser arquiteto e urbanista, pois foi em um ENEA, ocorrido em 1997 em Porto Alegre que decidi por fim cursar arquitetura, hoje minha profissão e minha vida.
O que mais me fascina nisso tudo, nesta entidade, ENEA, desde o início, é o quanto podemos nos sentir participantes e atuantes da vida de nossa comunidade, nos sentimos co-responsáveis pelo funcionamento da “cidade”, assumimos suas imperfeições e tentamos melhorá-la. Bom, se não tentamos é porque não queremos, mas fica sempre a sensação de que podemos.
Amanhecia em João Pessoa, enquanto mais um encontro se acabava, e a cidade ENEA ia ficando vazia, uma a uma as delegações iam embarcando em seus ônibus. Tínhamos todos que voltar ao cotidiano do mundo de fora e onde cada um daqueles que viveram aquela cidade efêmera sonhava com o próximo encontro com a próxima materialização daquela cidade que fica presa no imaginário de cada um durante quase todo o ano, mas por sete dias se materializa e recebe de volta seus velhos moradores, e acolhe com imenso carinho os novos, que quiçá também a levarão no imaginário por mais um ano.



¹ O tema do XXI ENEA foi “A estética da ética: por uma nova arquitetura”. O tema foi escolhido, como era prática, na plenária final do XX ENEA, em Taubaté, julho de 2000.


HUM, A CIDADE DO SABER
O XXV ENEA aconteceu na cidade de João Pessoa, no ano de 2001.
Foi o primeiro encontro que participei. Tudo era uma novidade. Fiquei fascinado com o encontro e com tudo que havia para fazer. Uma simples oficina, uma palestra, uma visita a um lugar novo, enfim, tudo instigava a me envolver cada vez mais.
Reconheci aquele encontro como uma grande escola. Acredito que por ser meu primeiro encontro eu estava mais disposto e aberto para novas possibilidades, por isso pude perceber este encontro desta forma.